segunda-feira, 11 de abril de 2011

Da Ética, o valor intrínseco e a alimentação humana

Este texto começa como uma espécie de aula. Não particularmente aborrecida, mas não é para todos... Alguma vez se perguntaram acerca do valor das coisas? Será que as coisas valem apenas pela utilização que lhes damos ou terão algum valor intrínseco? Se pensarmos nas coisas como objectos, então a tendência será utilitarista, o único valor é instrumental... Mas e se estivermos a falar de outros seres vivos? Se estivermos a falar de outros indivíduos, reconhecemos que eles têm valor intrínseco, porque nós também temos. Porque cremos que há algo de extremamente especial e diferente em nós que nos dota de uma espécie de valor que não existe no resto do Universo. Que visão tão egocêntrica, tão antropocêntrica, tão... Humana. Esta visão de que apenas o ser humano tem qualquer valor intrínseco é a base do Antropocêntrismo.

Então e outros seres vivos como os cães, gatos, golfinhos e por aí fora? Somos até capazes de os reconhecer como sendo inteligentes, criamos laços afectivos com eles. Eles têm até uma certa capacidade de aprendizagem e parecem demonstrar emoções... Sentem prazer e dor. Serão meros utensílios ou ferramentas? A maioria das pessoas vê-os como tendo valor próprio e eu vejo-me obrigado a concordar. À ideia de que qualquer ser vivo capaz de sentir dor ou prazer é dotado de valor intrínseco, chamamos de Sencientismo.

Mas será que nos podemos ficar por aqui? Então e seres vivos como os insectos ou as plantas? Incapazes de sentir dor ou prazer, serão meras ferramentas por essa razão? Eis uma excelente questão, uma que muitos já tentaram responder usando os mais variados argumentos, mas aquilo que eu vos pergunto é o seguinte: já viram uma lesma ou um caracol contorcer-se quando em contacto com sal? Segundo os padrões humanos, esses seres vivos são incapazes de sentir dor, mas então porque é que se contorcem? Não me parece que estejam propriamente confortáveis, nem creio que tenham qualquer apetência particular pela morte. Aí está o cerne do problema, também estes seres "desejam" viver, não nascem com um mero intuito cego de morrer passado algum tempo. Reproduzem-se, vivem, evoluem! Não é isso uma demonstração de valor intrínseco?

E quanto às plantas? Também não sentem dor ou prazer segundo os nossos parâmetros, pior do que isso, não se parecem mover ou fazer algo para se resguardarem de danos exteriores, mas estudos (não tão recentes) já demonstraram que as plantas, quando numa situação de morte iminente (que, geralmente, ocorre de forma mais lenta que a maioria dos outros seres vivos, libertam quantidades enormíssimas de químicos que aceleram o metabolismo e, geralmente, têm o intuito de espalhar a sua semente pelo ar, para que a sua espécie continue, viva, evolua, perpetue-se... Eu estranho como é que alguém é capaz de olhar para estes comportamentos inatos, reflexivos, mecânicos e e achar que isso é justificável da sua instrumentalização e desconsideração de valor intrínseco... Se vos agredirem, reagem conscientemente? Eu diria que é maioritariamente por instinto, perdoem-me se estou a fazer uma assunção incorrecta. Enfim, esta ideia que expressei nestes dois últimos parágrafos tem o nome de Biocêntrismo e considera que todos os seres vivos, dos microorganismos aos macroorganismos, são dotados de valor intrínseco e não apenas intrumental.

Ah, mas há ainda algo em falta! Poderiam pensar que já estando todos os seres vivos incluindos no Biocêntrismo, não teríamos que continuar a chatear-nos com o valor intrínseco das "coisas", mas a verdade é que tanto o Antropocêntrismo, como o Sencietismo e o Biocêntrismo têm uma ideia em falta: os ecossistemas, as espécies, as entidades supraindividuais. As três considerações éticas que antes referi, quanto ao valor intrínseco, focam-se em entidades individuais, mas também as espécies e os ecossistemas podem ser afectados como um todo, correcto? Não afectamos apenas seres individuais, a poluição de um lago, por exemplo, não causará danos a um peixe em particular, mas a toda a sua espécie. As influências num ecossistema são imensas e um ecossistema é mais que a soma de todos os seres vivos que o compõem, pois também o habitat, o próprio solo, o clima, etc., tem um determinado valor, pode ser afectado por forças externas, não é isso justificação suficiente para se considerar que tenham valor intrínseco? Já muitos indivíduos assim pensaram e argumentaram nesse sentido... A esta ideia chamamos de Ecocêntrismo e é nesta consideração ética do valor intrínseco que eu me insiro.

Agora chegou a altura de partir para um campo mais específico e mais práctico (nada práctico, como verão, mas é mais por uma questão de aplicação): a nossa alimentação.

A verdade é que, antropocêntricos, consideramos consumir outro ser humano como moralmente incorrecto... Mas então e os outros seres vivos sencientes? As vacas, cavalos, baleias e por aí fora. A maioria consegue reconhecer que estes seres são dotados de valor intrínseco, então como é que são capazes de os criar e matar para deles se alimentarem? Certamente compreenderão o quão moralmente incorrecto isso é, não? Mas e os seres vivos não-sencientes? As plantas, os moluscos, insectos?

Não sentem que ainda estamos em falta? Onde é que está a consideração do valor da vida e do direito à vida (e qualidade de vida!) de qualquer ser vivo? É também moralmente incorrecto alimentarmo-nos das plantas e esses animais que consideramos... Inferiores (engraçado que esta ideia demonstra-nos que até os vegetarianos e vegans estão errados, aliás, nem consigo pensar em ninguém que esteja correcto neste aspecto)... Inferiores, deveríamos ter vergonha de alguma vez considerarmos outro ser vivo como sendo inferior, como se tivéssemos algum direito superior à vida. Acho a ideia ridícula. A verdade é que cheguei à conclusão que é eticamente e moralmente incorrecto para o ser humano alimentar-se ou prejudicar, pela sua acção e pensamento, qualquer ser vivo e sei que a minha argumentação não só é lógica como sólida, e isso torna-se algo assustador, não?

Quem sabe... Se calhar não o sentem como eu, não vêm quão incorrecto é, tudo por uma questão de causalidade, de "termos que viver, certo"? Certo? Quem é cada um de nós para decidir sobre a vida ou morte de outro ser? De onde parte essa superioridade moral? Não vos incomoda minimamente a forma como o ser humano se desenvolveu até hoje? Somos piores que parasitas, verdadeiramente, utilizamos tudo como meras ferramentas, somos tendencialmente antropocêntricos, egocêntricos e estamos a destruir o nosso planeta (não apenas os seres vivos que nele habitam, mas o próprio planeta). Isto quer dizer que sou capaz de deixar de me alimentar e simplesmente morrer? Infelizmente, não. E digo infelizmente, pois assim é, sinto-me hipócrita por ter uma certeza tão grande da conclusão moral a que cheguei quanto à alimentação e, no entanto, quase nada consigo fazer quanto a isso. Essa é apenas uma das razões pelas quais sinto um profundo ódio por mim mesmo, por não encontrar alguma solução (não tenho o intelecto para isso) e mal consigo sequer passar estas ideias a outras pessoas... Que cansaço.

Mas há uma pequena luz ao fundo do túnel, alguns poderão ter começado a aperceber-se de algumas possibilidades de alimentação, enquanto liam o último parágrafo... Vejamos a forma como as plantas se alimentam, sem prejudicarem outros seres vivos (excepto em situações raras), crescendo e perpetuando-se de uma forma sustentável, atentem nessa palavra: sustentável! Água, minerais no solo, o processo de produção de energia que ocorre por acção do Sol, graças ao cloroplasto das células vegetais... Se conseguíssemos reproduzir essa produção de energia num ser humano, poderíamos ter aí a resposta a este dilema moral que eu considero gravíssimo, mas não há grande investigação nessa área, considera-se uma quase impossibilidade, os custos seriam certamente exorbitantes e a verdade é que nós passámos a viver à base do dinheiro. Somos uma sociedade do dinheirismo, tanto que já mal conseguimos encontrar sociedades que não tenham alguma espécie de troca directa ou monetária que regule as suas relações interpessoais, e por essa razão, provavelmente nunca conseguiremos alcançar esse caminho melhor, ético (pelo menos, não tão pouco ético como o que hoje caminhamos).

Enfim, nesta altura pensarão já que eu sou semi-louco, ou mesmo louco, mas ainda nem vos expressei a minha ideia mais chocantes relativamente a este tema... Pois, é verdade... Faltou-me ainda referir a questão da causalidade, à qual me referi apenas brevemente, há uns quantos parágrafos. Então e a morte natural? A morte por causas naturais, velhice, doença e todas as outras possibilidades. Seria incorrecto alimentarmo-nos de um ser que morreu por causas naturais?

Qualquer ser vivo, aquando da sua morte, torna-se um mero objecto orgânico que começará a apodrecer, a ser lentamente consumido por microorganismos, permitindo a continuidade do ciclo da vida. E a questão que eu levanto é a seguinte: será moralmente incorrecto alimentarmo-nos de seres vivos que morreram naturalmente? Eu considero que não. Um ser vivo morto (não gostei nada de escrever isto) tem uma ligação meramente material com a realidade. Não pode amar, não pode sentir prazer ou dor, não cria relações com o meio envolvente e outros seres, é um mero objecto, uma ocupação de espaço e qualquer ideia que tenhamos de uma ligação com um ser que já faleceu, não parte do próprio ser, mas de nós. Resquícios de emoções, apegos afectivos por, essencialmente, meras coisas, objectos orgânicos. Faz parte da nossa cultura, é algo que nos é incutido desde jovens, temos cultos dos mortos em todas as sociedades e culturas, das mais variadas formas, mas todos eles são relativamente sem-sentido, pois todos partem de relações com seres que já o não são, relações com memórias e experiências, relações com algo que está apenas dentro de nós...

Pergunto-me se alguém já viu aonde eu quero chegar... Pode ser que sim, se tiverem uma ideia básica de como as minhas linhas de pensamento se desenvolvem, ou talvez porque também já o pensaram mas abominam a ideia, nunca saberei se não o disserem... É verdade, após a morte, como em vida, não faço distinção de valor intrínseco entre qualquer ser vivo, ênfase no qualquer. Vou deixar-me de rodeios, pô-lo em palavras simples: ao longo deste texto, das ideias que expressei e das conclusões morais a que cheguei, defendo que as únicas formas moralmente correctas de um indivíduo se alimentar são uma espécie de alimentação inorgânica (ainda bastante fora do nosso alcance) e a necrofagia. Incluindo aí a necrofagia humana. Comer outros seres vivos que morreram de causas naturais, incluindo humanos.

Com isto me despeço, deixo-vos ideias bem mais complexas e prácticas em que pensar que o habitual. Não me tomem por tolo ou irrealista, não sou nem um nem outro e, mesmo reconhecendo as possíveis consequências da expressão desta ideia, aqui se encontra a base moral da minha visão da valorização intrínseca da vida e do fenómeno (humano) de alimentação, em todas as suas formas.

2 comentários:

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