sexta-feira, 6 de maio de 2016

A vida é curta

Manuel Monteiro era um empresário de sucesso e tal era o único elogio possível de se fazer a semelhante indivíduo. Um homem anafado e atarracado, Manuel Monteiro era um indivíduo de excessos, algo constatado por uma bojuda barriga, triplo queixo e todo um repulsivo conjunto de pregas que lhe adornavam o corpo. Uma vida de luxos, avareza e gula havia feito deste homem um avatar da decadência e assaz virulência características da sociedade de desperdício dos nossos dias.
Desde os fatos de alfaiate, materializados por tecidos importados de qualidade inigualável, aos pratos exóticos que mandava preparar por um pequeno exército de cozinheiros de renome, aos mais estonteantes automóveis que se viam trocados de poucos em poucos meses e até às mais desejadas e produzidas prostitutas das quais fazia frequente uso, há muito que Manuel Monteiro deixara de se considerar como apenas mais um entre comuns mortais, vendo-se praticamente como um semi-deus com controlo directo sobre a vida de centenas de pessoas e uma esfera de influência que englobava, de forma mais ou menos marcante, a vida de centenas de milhar.
O escritório em que se encontrava de momento, assim como durante a maior parte das horas dos seus dias, era igualmente um local de excessos, em que os mármores e acabamentos de ouro contrastavam garridamente com vermelhos veludos e o ébano de móveis de proporções imensas, estes de um surpreendentemente bom gosto e motivo de inveja para muitos parceiros de negócio e ademais ilustres visitantes deste opulento antro. Esta pequena propriedade, sendo pequena um termo unicamente aceitável quando comparada aos palacetes e penthouses espalhados por território nacional e internacional dos quais era dono, daria para albergar comodamente duas ou três famílias.
Embora a temperatura interior estivesse regulada para uns constantes e agradáveis 24ºC e a noite estivesse de céu limpo, ornada por uma bela lua cheia, Manuel Monteiro passara longas horas a remoer pensamentos acerca das muitas vidas que destruíra no progresso da sua, assim como os inimigos poderosos que coleccionara. Para se afastar de tão frequentemente nefando estado de espírito, decidira fazer uso dos serviços de Cristal, uma deliciosa mulata de traços exóticos, cujo nome “artístico” estaria ou não relacionado com a límpida, inodora  e cristalina urina que regalava os seus clientes com semelhantes inclinações. Sem contar que a jovem providenciava um felácio que ia muito além das suas mais prazenteiras fantasias, e ejacular por aquela doce garganta abaixo era exactamente o tipo de escape que Manuel Monteiro estava a precisar.
No entanto, era o pequeno objecto metálico profundamente alojado no seu cérebro e o buraco do vazado olho direito, do qual escorria matéria encefálica e sangue, que ocupava plenamente a sua existência, impedindo quaisquer fantasias e pensamentos presentes e futuros.

***

Vasco Gaspar, auto-proclamado “poeta invertebrado”, autor de pérolas literárias em que expressões como “broches de esvaziar o tanque” e “tetas de proporções meloânicas” eram a norma e não a excepção, não era facilmente surpreendido. Se tal se devia à crescente falta de sensibilidade resultante dos horrorres à livre disposição pela internet ou a uma qualquer falha de carácter inata é algo impossível de discernir, embora os seus traços opiniados e tendência para as teorias da conspiração e ideias ridículas apontassem mais para a primeira causa. O facto era que Vasco Gaspar encontrava-se surpreendido, chocado mesmo, pois entre outras características e actividades comuns entre a escumalha da Terra, era um mirone. E acabava de assistir, através do seu fiel telescópio, ao brutal e eficiente assassínio da “besta imensa” do prédio da frente, por um homem alto e magro, de fato e gravata, e com alguns piercings. Que personagem invulgar.
Um dos seus primeiros instinctos havia sido o de utilizar tão divinamente cruenta inspiração para escrever um poema que muitos poetas seriam incapazes de “imolar”, mas num raro acesso de humanidade ou civismo, decidira ligar para a Polícia. Seria algo estranho explicar às forças da autoridade como assistira ao assassínio, mas a sua falta de vergonha ou de inteligência não o levava sequer a considerar os problemas em que poderia vir a encontrar-se devido aos seus nojentos hábitos. Como tal, Vasco Gaspar mantinha a atenção focada na cena do crime, entretendo-se até a Polícia o vir importunar.
Enquanto esperava e se entretinha, foi ainda com surpresa que viu uma jovem mulata, a qual prontamente reconheceu como uma das mais frequentes prostitutas da “besta imensa”, entrar no escritório e desatar naquilo que seria certamente um chinfrim histérico desgraçado. A cena era absolutamente fenomenal, pelo que não mais se conteve, pegou no seu bloco de notas e começou a escrevinhar um poema épico, enquanto se aproximava de longe o som de sirenes.
- “A besta imensa, em vez de levar um mamada, mama uma na tola!” – Genial, mesmo.
Talvez devido a todas estas distracções, Vasco Gaspar não se apercebeu dos suave passos atrás de si e pouco mais fez além de arregalar os olhos ao sentir o silenciador de uma arma a ser encostado à sua nuca.

***

Havia apenas uma morte planeada para esta noite, mas as circunstâncias haviam mudado quando se apercebera, pela janela, de um ligeiro brilho ao longe, daquilo que seria um telescópio ou máquina fotográfica. Danos colaterais eram um enorme desperdício, não só porque por vezes incorriam em penalidades nos seus honorários, como eram efectivamente uma perda de futuros empregadores ou alvos. Muito pouco eficiente. Estes raros momentos levavam-no a questionar se ainda se encontrava apto para seguir com esta linha de trabalho, mas os seus frequentes empregadores desmentiam qualquer dúvida quanto às suas capacidades.
Enfim, danos colaterais eram um enorme desperdício, mas…
- Testemunhas são inaceitáveis.

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