Manuel Monteiro era um empresário de sucesso e tal
era o único elogio possível de se fazer a semelhante indivíduo. Um homem
anafado e atarracado, Manuel Monteiro era um indivíduo de excessos, algo constatado
por uma bojuda barriga, triplo queixo e todo um repulsivo conjunto de pregas
que lhe adornavam o corpo. Uma vida de luxos, avareza e gula havia feito deste
homem um avatar da decadência e assaz virulência características da sociedade
de desperdício dos nossos dias.
Desde os fatos de alfaiate, materializados por
tecidos importados de qualidade inigualável, aos pratos exóticos que mandava
preparar por um pequeno exército de cozinheiros de renome, aos mais
estonteantes automóveis que se viam trocados de poucos em poucos meses e até às
mais desejadas e produzidas prostitutas das quais fazia frequente uso, há muito
que Manuel Monteiro deixara de se considerar como apenas mais um entre comuns
mortais, vendo-se praticamente como um semi-deus com controlo directo sobre a
vida de centenas de pessoas e uma esfera de influência que englobava, de forma
mais ou menos marcante, a vida de centenas de milhar.
O escritório em que se encontrava de momento,
assim como durante a maior parte das horas dos seus dias, era igualmente um
local de excessos, em que os mármores e acabamentos de ouro contrastavam
garridamente com vermelhos veludos e o ébano de móveis de proporções imensas,
estes de um surpreendentemente bom gosto e motivo de inveja para muitos
parceiros de negócio e ademais ilustres visitantes deste opulento antro. Esta
pequena propriedade, sendo pequena um termo unicamente aceitável quando
comparada aos palacetes e penthouses espalhados por território nacional e
internacional dos quais era dono, daria para albergar comodamente duas ou três
famílias.
Embora a temperatura interior estivesse regulada
para uns constantes e agradáveis 24ºC e a noite estivesse de céu limpo, ornada
por uma bela lua cheia, Manuel Monteiro passara longas horas a remoer
pensamentos acerca das muitas vidas que destruíra no progresso da sua, assim
como os inimigos poderosos que coleccionara. Para se afastar de tão
frequentemente nefando estado de espírito, decidira fazer uso dos serviços de Cristal,
uma deliciosa mulata de traços exóticos, cujo nome “artístico” estaria ou não
relacionado com a límpida, inodora e
cristalina urina que regalava os seus clientes com semelhantes inclinações. Sem
contar que a jovem providenciava um felácio que ia muito além das suas mais
prazenteiras fantasias, e ejacular por aquela doce garganta abaixo era
exactamente o tipo de escape que Manuel Monteiro estava a precisar.
No entanto, era o pequeno objecto metálico
profundamente alojado no seu cérebro e o buraco do vazado olho direito, do qual
escorria matéria encefálica e sangue, que ocupava plenamente a sua existência,
impedindo quaisquer fantasias e pensamentos presentes e futuros.
***
Vasco Gaspar, auto-proclamado “poeta
invertebrado”, autor de pérolas literárias em que expressões como “broches de
esvaziar o tanque” e “tetas de proporções meloânicas” eram a norma e não a
excepção, não era facilmente surpreendido. Se tal se devia à crescente falta de
sensibilidade resultante dos horrorres à livre disposição pela internet ou a
uma qualquer falha de carácter inata é algo impossível de discernir, embora os
seus traços opiniados e tendência para as teorias da conspiração e ideias
ridículas apontassem mais para a primeira causa. O facto era que Vasco Gaspar
encontrava-se surpreendido, chocado mesmo, pois entre outras características e
actividades comuns entre a escumalha da Terra, era um mirone. E acabava de
assistir, através do seu fiel telescópio, ao brutal e eficiente assassínio da
“besta imensa” do prédio da frente, por um homem alto e magro, de fato e
gravata, e com alguns piercings. Que personagem invulgar.
Um dos seus primeiros instinctos havia sido o de
utilizar tão divinamente cruenta inspiração para escrever um poema que muitos poetas
seriam incapazes de “imolar”, mas num raro acesso de humanidade ou civismo,
decidira ligar para a Polícia. Seria algo estranho explicar às forças da
autoridade como assistira ao assassínio, mas a sua falta de vergonha ou de
inteligência não o levava sequer a considerar os problemas em que poderia vir a
encontrar-se devido aos seus nojentos hábitos. Como tal, Vasco Gaspar mantinha
a atenção focada na cena do crime, entretendo-se até a Polícia o vir
importunar.
Enquanto esperava e se entretinha, foi ainda com
surpresa que viu uma jovem mulata, a qual prontamente reconheceu como uma das
mais frequentes prostitutas da “besta imensa”, entrar no escritório e desatar
naquilo que seria certamente um chinfrim histérico desgraçado. A cena era
absolutamente fenomenal, pelo que não mais se conteve, pegou no seu bloco de
notas e começou a escrevinhar um poema épico, enquanto se aproximava de longe o
som de sirenes.
- “A besta imensa, em vez de levar um mamada, mama
uma na tola!” – Genial, mesmo.
Talvez devido a todas estas distracções, Vasco
Gaspar não se apercebeu dos suave passos atrás de si e pouco mais fez além de
arregalar os olhos ao sentir o silenciador de uma arma a ser encostado à sua
nuca.
***
Havia apenas uma morte planeada para esta noite,
mas as circunstâncias haviam mudado quando se apercebera, pela janela, de um
ligeiro brilho ao longe, daquilo que seria um telescópio ou máquina fotográfica.
Danos colaterais eram um enorme desperdício, não só porque por vezes incorriam
em penalidades nos seus honorários, como eram efectivamente uma perda de futuros
empregadores ou alvos. Muito pouco eficiente. Estes raros momentos levavam-no a
questionar se ainda se encontrava apto para seguir com esta linha de trabalho,
mas os seus frequentes empregadores desmentiam qualquer dúvida quanto às suas
capacidades.
Enfim, danos colaterais eram um enorme
desperdício, mas…
- Testemunhas são inaceitáveis.
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